26/05/2025 20:52
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“Pronta para o 2.º turno?” – O peso (in)visível do trabalho doméstico e de cuidado feito pelas mulheres: análise crítica e cultural de uma desigualdade estrutural
Por José A. Carvalho/Twenty4news
No passado dia 24 de maio, realizou-se a XIII Conferència fundamental para o debate sobre igualdade de género em Portugal, sob o título provocador “Pronta para o 2.º turno?”. Moderado por Catarina Furtado, fundadora da ONG Corações Com Coroa, o encontro reuniu os sociólogos Heloísa Perista, Sandra Cunha, Paulo Nossa e Dalila Cerejo, numa reflexão profunda sobre o peso desproporcional, invisível e não remunerado do trabalho doméstico e de cuidado que recai sobre as mulheres.
XIII Conferência e Prémio de Comunicação Corações Capazes de Construir | Créditos: José A. Carvalho/Twenty4news
O chamado “2.º turno” é uma metáfora real: após o emprego formal, milhões de mulheres continuam numa segunda jornada – limpar, cozinhar, cuidar, gerir emocionalmente o lar. Este ciclo, normalizado e romantizado durante décadas, tem consequências devastadoras para a participação plena das mulheres na vida económica, social e política. Heloísa Perista sublinhou a centralidade do cuidado como questão política e económica, ainda hoje marginal nas decisões públicas.
Sandra Cunha destacou o enraizamento precoce destes papéis de género, reforçados por estereótipos na infância e pelas instituições educativas. Dalila Cerejo aprofundou o conceito de "carga mental", revelando o trabalho invisível de planear, antecipar e organizar, que raramente é reconhecido. E Paulo Nossa, com uma intervenção lúcida e necessária, reforçou que a mudança não se fará sem os homens: “É tempo de abandonar a ideia de que ajudar é suficiente. É preciso assumir responsabilidades.”
Catarina Furtado, ao moderar o debate, não foi apenas facilitadora – foi também voz ativa e crítica: “O peso invisível do trabalho doméstico e de cuidado feito pelas mulheres é uma realidade que diz respeito a todas as pessoas.” Reforçando a dimensão estrutural da desigualdade, afirmou: “Tudo se resume a uma questão de poder. Um mundo dominado por homens e uma cultura dominada por homens irão sempre produzir resultados que favorecem os homens”, e deixou claro o seu posicionamento ético: “Falar de direitos das mulheres é falar de direitos humanos.”
Um dos momentos mais marcantes da conferência foi o lançamento da Campanha Invisíveis, que irá materializar-se numa exposição no Metro do Cais do Sodré, em junho. O projeto resulta da colaboração entre academia e comunicação criativa, partindo de uma investigação científica sobre o trabalho de cuidado. O storytelling da campanha foi apresentado pela socióloga Catarina Mendes Cruz e o criativo Edson Athayde, mostrando como é possível transformar dados em narrativas poderosas e acessíveis.
Em exclusivo para o Twenty4news, Catarina Mendes Cruz sublinhou:
“O que foi dito é apenas o início. Ainda há muito por fazer. O importante é não deixar o que foi conseguido até hoje, retroceder. Esta campanha pretende ser o primeiro passo na sensibilização de homens e mulheres, de forma a ser um trabalho contínuo, embora difícil e duro. É importante contribuirmos para a reflexão, porque muitas vezes ela fica silenciada dentro de casa. Nesse sentido, é necessário que não haja medo de partilhar e dizer NÃO. Isto não está correto. O direito e o dever devem ser iguais entre homens e mulheres.”
A sessão foi ainda marcada por momentos de celebração e intervenção cultural. A entrega do 12.º Prémio de Comunicação CCC, apresentada por Vasco Palmeirim, reforçou o papel fundamental dos media na promoção de uma sociedade mais justa e atenta aos direitos humanos.
Seguiram-se duas intervenções artísticas que tocaram fundo: a poeta Alice Neto de Sousa, com versos que ecoaram as vozes silenciadas das mulheres que cuidam, e Carminho, cuja interpretação emotiva, enraizada no fado, deu corpo à dor, à resiliência e à esperança de tantas vidas invisibilizadas.
A conferência “Pronta para o 2.º turno?” não foi apenas um espaço de diagnóstico – foi um ponto de viragem. As ideias partilhadas apontam para uma exigência clara: é urgente repensar o valor do cuidado. É urgente redistribuir tempo, afetos e responsabilidades. E é essencial reconhecer que sem igualdade no espaço doméstico, não existe cidadania plena.
A articulação entre ciência, ativismo, arte e comunicação – patente neste evento – revela-se como o caminho mais coerente e assertivo para a transformação social. A visibilidade que a Campanha Invisíveis promete trazer, aliada às vozes comprometidas de quem investiga, comunica e cuida, poderá ser o início de um novo capítulo.
Porque, como disse Catarina Furtado, “falar de direitos das mulheres é falar de direitos humanos.” E não há direitos humanos enquanto o cuidado for destino de algumas e escolha de outros.