15/05/2025 02:06
15/05/2025 02:06
Por José A. Carvalho/Twenty4news
“Organismo” estreia-se em Lisboa com espetáculo imersivo que cruza croché, circo, dança e música ao vivo
De 15 a 18 de maio, o espaço das Carpintarias de São Lázaro, na Mouraria (Lisboa), acolhe Organismo, uma criação da companhia Maraña, dirigida pela artista chilena Paula Riquelme (Lapaulari): “o que fazemos é arte cénica, a arte posta em cena” referiu a artista. A proposta une circo contemporâneo, dança, teatro físico, marionetas e música ao vivo num espetáculo imersivo e sensorial, apresentado pela primeira vez em Portugal.
Com uma forte componente visual e têxtil, “Organismo” desenvolve-se no interior de uma instalação monumental de croché, feita à mão, que envolve o público e os intérpretes num espaço orgânico, vivo e transformador. A peça propõe uma experiência de reconexão entre corpos, gestos e texturas, explorando temas como o coletivo, a fragilidade e o impulso vital de pertencermos a algo maior.
A encenação convida à proximidade entre artistas e audiência, dispensando a palavra e abrindo caminho à comunicação corporal e emocional. A banda sonora é executada ao vivo por DJs Kotoe e Anya, que também assinam a festa Kami Nami, programada após a sessão de sábado, num prolongamento celebratório da proposta artística.
Com uma equipa artística composta maioritariamente por mulheres, e raízes latino-americanas e ibéricas, “Organismo” afirma-se como uma experiência poética, sensível e política. O espetáculo é acessível a todos os públicos e não exige compreensão verbal, tornando-se uma viagem inclusiva e universal.
"Organismo" em cena nas Carpintarias de S. Lázaro | Créditos: José A. Carvalho/Twenty4news
Lisboa está cada vez mais aberta a propostas híbridas e sensoriais
Nos últimos anos, o público lisboeta tem demonstrado grande interesse por experiências artísticas imersivas e fora do convencional. Espaços como o próprio Carpintarias de São Lázaro, o MAAT, o Museu do Oriente, e eventos como o Festival Temps d’Images, Festival Cumplicidades, ou Walk & Talk, vêm formando um público curioso, sensível e recetivo à mistura de linguagens como a que “Organismo” propõe. Segundo Paula: “Portugal é uma mistura, um perfeito lugar entre o Sul da América e a Europa, sinto-me aqui mais próxima da minha realidade, do meu país” concluiu.
Mesmo sem um grande espetáculo visual ou nomes mediáticos, projetos com identidade visual marcante, envolvimento sensorial e forte componente poética tendem a ter boa recetividade — sobretudo entre públicos jovens, femininos, que estão ligados às artes.
O facto de o espetáculo ter pouco ou nenhum texto falado pode até ser um ponto positivo, pois amplia a acessibilidade e permite maior abertura interpretativa, “Organismo” tem tudo para ser bem recebido e até se tornar um "acontecimento" na cena cultural de Lisboa.
No entanto o facto de o elenco de “Organismo”ser exclusivamente feminino reflete várias camadas de intenção e significado: num espetáculo que trabalha com têxteis, toque, sensorialidade, intimidade e organicidade, ter um elenco apenas feminino amplifica a força simbólica desses temas. O corpo da mulher aqui não é objeto — é sujeito criador, condutor de narrativas, linguagem e presença. Trata-se de uma reapropriação do corpo e do espaço.
Historicamente, o circo e o teatro físico foram dominados por narrativas e estruturas de poder masculinas. Um elenco 100% feminino, liderado por uma mulher criadora (Paula Riquelme), propõe uma estética do cuidado, da escuta, da horizontalidade, contrariando a lógica do virtuosismo e do espetáculo de força que tantas vezes marca o circo tradicional.
O próprio nome da companhia — Maraña — evoca uma rede, um emaranhado, algo orgânico e interligado. O elenco feminino reforça esta imagem de teia coletiva, de corpos que se sustentam mutuamente. Não há hierarquia — há simbiose.
O universo de "Organismo" está carregado de símbolos tradicionalmente associados ao "feminino": croché, tecelagem, maternidade simbólica, corpo sensível, espaço úmido e mutável. Mas aqui, essa feminilidade não é frágil ou passiva — é ancestral, criadora, fluida, inquieta, como uma célula em constante mutação. O elenco só feminino reforça essa metáfora viva.
Ter apenas mulheres em cena não é um detalhe. É uma escolha estética, ética e política que amplia a leitura da obra e coloca o espectador diante de uma proposta que reformula o que é espetáculo, o que é poder, e o que é beleza — a partir de uma linguagem feminina, sensível e forte.
Contudo, uma moeda tem sempre duas faces: mesmo sendo uma proposta inovadora e sensorialmente rica — levanta alguns possíveis pontos de tensão ou fragilidade, dependendo da perceção de certos públicos ou da execução prática em cena.
Apesar da proposta visualmente impactante e da atmosfera imersiva, “Organismo” pode dar primazia à forma em detrimento da profundidade dramatúrgica. A ausência de uma narrativa clara, verbal ou simbólica mais estruturada, pode deixar parte do público com a sensação de estar diante de um "belo vazio" — uma sucessão de imagens fortes, mas sem um fio condutor emocional ou conceitual suficientemente sólido para sustentar o espetáculo do início ao fim.
Embora o espetáculo toque em temas fortes como o coletivo, o feminino, o sensorial e o corpo, nem todos esses elementos são plenamente desenvolvidos de forma crítica ou conceptual. Alguns espectadores mais atentos ao discurso político ou feminista poderão questionar: para além da estética, onde está a provocação, a fricção, o confronto com o mundo real?
"Organismo apresenta uma estética envolvente e uma proposta artística sensível, mas pode deixar parte do público à deriva, entre a beleza formal e a ausência de uma dramaturgia mais clara. O risco está em transformar a experiência sensorial numa contemplação distante — bonita, sim, mas talvez pouco transformadora."